História da Cartografia
Abilio de Castro Gurgel

Gerardus Mercator foi muito mais que um autor de mapas. Apesar de em suas biografias ser denominado, na maioria das vezes, de Cartógrafo ou Geógrafo, deixou outras grandes contribuições para a humanidade.
Mercator distinguiu-se e apresentou-se como calígrafo, entalhador e gravador em placas de cobre (usadas em impressão gráfica), construtor de instrumentos científicos (compassos, réguas e esquadros), de globos terrestres e celestiais, assim como editor de seus mapas.
Seu conhecimento teórico em Matemática, Astronomia, Filosofia, Cosmografia e Teologia, de acordo com os registros, foram bastante significativos. Foram os seus repertórios práticos e teóricos, que certamente o auxiliaram a pensar, planejar e fazer uma projeção cartográfica, que se mostraria como um dos conceitos mais importantes para a navegação marítima e como um padrão em mapas.
Gerardus Mercator nasceu em 1512 e morreu em 1594. Nessa época, a Europa passava por difíceis momentos de violentos levantes sociais, pestes, revoluções religiosas e, ao mesmo tempo, de grandes descobertas marítimas que iriam modificar e ampliar de maneira nunca antes imaginada a economia e a sociedade do Velho Mundo.

Para entender melhor o século XVI, deve-se observar que essas mudanças econômicas já aconteciam desde o século XIII. Foi considerado pelos estudiosos como o século em que a Idade Média chegou ao seu apogeu. Jacques Le Goff, conforme é sabido, um dos grandes investigadores da Europa medieval, explica que três pontos seriam os mais importantes e que dariam as condições objetivas para que se iniciasse o processo de mudança, em especial, as que envolviam o sistema feudal:

a) A mudança do campo para a cidade.
Nesse ambiente eram formados os novos centros econômicos e intelectuais da Europa. Além disso, nas cidades é que apareceram novas formas de instituições políticas (por exemplo, as comunas em algumas cidades italianas).

b) A renovação do comércio e da promoção das mercadorias junto com todas as vantagens e problemas levantados pela difusão e uso da moeda e, principalmente, uma forma mais efetiva de cobrança, não só de taxas, como também de impostos.

c) A valorização do saber.
Esse processo teria início com o que se chamaria hoje de ensino fundamental e médio e que, dependendo da região e da cidade, atingiria até 60% das crianças. Houve, sobretudo, a criação das Universidades. Vale lembrar que o ensino universitário desembocou na difusão e promoção dos livros.

Foi em plena decadência do sistema feudal que se criou a semente de um novo sistema econômico que mudou as estruturas políticas com a valorização dos estados centrais e a figura de um Rei. Conforme se sabe, de acordo com grandes especialistas no assunto, essa inovadora forma de economia, naturalmente, com várias e diferentes mudanças, permanece até nossos dias.

Maurice Dobb, economista e conhecedor de ideias econômicas, assim coloca:

“Desse modo, o capitalismo não era apenas um sistema de produção para o mercado, mas um sistema sob o qual a própria capacidade de trabalho ‘se tornara uma mercadoria’ que era comprada e vendida no mercado como qualquer outro objeto de troca.”

Junto com essas mudanças que modificaram e colocaram a Europa em outro patamar, não melhor ou pior, mas muito diferente do que havia, destacam-se duas inovações técnicas nesse novo Velho Mundo.
A primeira seria a pólvora. Fernand Braudel, um dos mais conceituados conhecedores da história e suas técnicas, deixa bem claro sua posição:

“Um nacionalismo leva os historiadores da ciência e da técnica a negar ou minimizar o que a Europa deve à China. Seja o que for, a descoberta da pólvora pelos chineses não é uma lenda . Desde o século IX da nossa era que eles a fabricam a pólvora com salitre, enxofre e carvão em pó.”

Muitas conquistas determinaram esse período, onde a pólvora e as armas de fogo tiveram uma importância substancial para os conquistadores. Pode-se destacar a conquista da América e, especificamente, o caso dos Astecas por Cortez e dos Incas por Pizarro. É evidente que as guerras e lutas sanguinárias sempre existiram em quase todos os povos e civilizações. Entretanto, com a pólvora a forma de guerrear-se passa a ser mais letal e mais brutal superada somente; mais tarde, pela invenção da bomba atômica, na Segunda Guerra Mundial, tornando-se ainda mais violenta e potente na maneira de destruir.
A segunda inovação foi, sem dúvida, a imprensa. Novamente Braudel coloca:

“Seja como for, cópia ou reinvenção, a imprensa europeia instala-se por volta de 1440-1450, não sem dificuldades, por sucessivos reajustamentos, pois os caracteres móveis têm de ser fabricados numa liga devidamente dosada de chumbo, estanho e antimônio que deve ser suficientemente resistente sem ser demasiadamente dura [...] e com a prensa de barras, no século XVI, a imprensa não se modificará até o século XVII.”

A imprensa e as Universidades fizeram o papel de difundir o conhecimento clássico grego-romano, necessitando de pessoas com conhecimento não só do latim, mas do grego e hebraico. Sem contar que as publicações nos idiomas locais, favoreceram o acesso ao conhecimento dos leigos e dos mais simples. Porém, não foram somente publicados os textos antigos, mas também as novas vozes das Ciências e da Filosofia tiveram um espaço excepcional para a difusão de seus conceitos e ideias com a rápida expansão da sociedade naquela época.

Como dados estatísticos, para mostrar o enorme crescimento do conhecimento, têm-se os seguintes números: com os chamados incunábalos , acredita-se, somariam o total de 20 milhões de exemplares.
No final do século XVI, ou cem anos mais tarde, haveria pela Europa toda entre 140 a 200 mil edições, sendo que cada edição teria mil exemplares, o que representaria cerca de 140 a 200 milhões de exemplares de livros.

Dessa forma , quando a Europa chegou ao século XVI , a situação econômica e social já era bem diferente se comparada com as anteriores, e com um processo político em franca efervescência. Como exemplo, em 1517, quando Mercator tinha apenas cinco anos, Martinho Lutero afixou as 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, iniciando o que foi considerada uma das maiores cisões na Igreja Católica. Porém, essa questão religiosa foi aproveitada pelos reis, príncipes e governantes para tornarem-se proprietários das terras da Igreja, desencadeando guerras pelo século seguinte, além de mudar a geografia política da Europa.

Foi, contudo, nos Países Baixos (na época englobado pelas atuais Bélgica e Holanda), que houve uma série de lutas entre cidades e regiões contra o poder do famoso monarca da família dos Habsburgos, Carlos V, rei da Espanha e dos Países Baixos e Imperador do Sacro Império Romano Germânico.
Paul Kennedy, em seu livro Ascensão e Queda das Grandes Potências, mostra uma das principais razões pelas quais o poder religioso acabou interferindo nas questões políticas:

[...] Tornou-se impossível separar o poder político das tendências religiosas existentes nas rivalidades que assolaram o continente nesse período [...] se Carlos V tivesse conseguido esmagar os príncipes protestantes da Alemanha na década de 1540, isso teria sido não só uma vitória da religião católica, mas também da influência dos Habsburgos, e o mesmo pode-se dizer de Felipe II (filho de Carlos V) para acabar com a inquietação religiosa na Holanda depois de 1566.

O norte da Itália (sobretudo Florença, Milão e os portos de Gênova e Veneza), detinha um grande poder econômico e político, principalmente por causa da exclusividade do comércio por todo o Mediterrâneo, que ia do mundo árabe-muçulmano, passando pelo Império Bizantino e chegando até a rota da seda. Entretanto, com a descoberta do caminho das Índias por Portugal e Espanha, houve a transferência desse poder.
Foram os Países-Baixos (além de França e Inglaterra) os que mais se beneficiaram com essa mudança de rota no comércio mundial. A eficiência mercantilista holandesa soube gerir, não só pelo Estado, mas também com a criação de empresas privadas (Companhia das Índias Ocidentais e Orientais), essa oportunidade de comércio. O que não se conseguiu através de artimanhas monetárias, obteve-se pela força militar. Essa entrada de capitais pelos portos de Amsterdam e Antuérpia modificou e ampliou a sociedade. Paul Kennedy revela, de maneira clara e fundamentada, essas transformações:

Já na década de 1560 navios holandeses, franceses e ingleses aventuravam-se pelo Atlântico e, um pouco depois, pelo Índico e Pacífico. O aspecto mais positivo dessa crescente rivalidade comercial e colonial foi a espiral ascendente do conhecimento. Sem dúvida, muitos dos avanços dessa época foram subprodutos da luta pelo comércio de além-mar: Cartografia, melhores tábuas de navegação, novos instrumentos como o telescópio, barômetro, quarto inglês, bússola de marinha, e melhores métodos de construção naval. Novas colheitas e plantas do “novo mundo” proporcionaram não só uma melhor alimentação como um estímulo para a botânica e a ciência agrícola. O conhecimento da metalurgia e da mineração também cresceu. As máquinas impressoras, além de produzirem Bíblias também faziam tratados políticos, físicos, químicos, de astronomia e de medicina.

Toda essa situação sociopolítica e econômica vai ao encontro das habilidades e qualidades naturais de Mercator. A junção do individual ao coletivo proporcionou uma obra diferenciada no seu próprio tempo e que se manteve além de outros trabalhos nessa área.